Este artigo é um apanhado de todo conhecimento a respeito do uso
terapêutico e espiritual do rapé. Muitas informações citadas neste texto são
relatos das minhas experiências, juntamente com as experiências de nosso
grupo de estudo (Sol da Manhã – Espaço Rapa Nuy) de Porto Alegre.
Percebemos a importância de esclarecer, orientar e conscientizar a toda
pessoa que faz uso desta poderosa medicina de cura, de forma a não cair na
banalização ou mau uso. O Espaço Rapa Nuy, em Porto Alegre, é referência
no Brasil em trabalhos espirituais junto aos povos indígenas, unindo os povos,
trocando conhecimentos e proporcionando ao público, a oportunidade de
conhecer um pouco da cultura e das tradições dos povos indígenas de toda
América. Uma das particularidades deste grupo é um estudo aprofundado
junto à medicina do rapé. Um trabalho iniciou-se a mais de 10 anos. Nos
últimos dois anos, o espaço tem realizado alianças, trocas culturais e
espirituais com as etnias Huni Kuin (Kaxinawa) e principalmente junto à etnia
Yawanawa – ambas localizadas no estado do Acre. O que é rapé? A palavra
rapé vem do francês “râper” (raspar). Basicamente, é tabaco moído, raspado
ou pilado, inalado ou aspirado via nasal. Até o início do século XX, era
bastante comum o uso de rapé no Brasil. Costumava ser vendido em caixinhas
(semelhantes às de fósforo) ou estojos. Seu uso, neste caso, não é ligado a
rituais (espirituais). O rapé elaborado puramente de tabaco está associado ao
tabagismo e pode causar dependência e doenças associadas ao seu uso
demasiado. Porém, o rapé utilizado para fins espirituais é composto por
outras plantas – neste artigo será enfatizado o uso da cinza da casca de pau
pereira (Geissospermum vellosii), utilizado por povos indígenas no norte do
Brasil. O tabaco sob o ponto de vista espiritual De maneira espiritual
(xamânica ou ritualística), o tabaco é considerado uma planta de poder,
sagrada e usada apenas para fins espirituais e/ou religiosos. Dentro de
muitas tradições nativas, é considerada como uma planta mestre, também
vista como um pai ou avô que contém toda sabedoria ancestral da floresta.
O tabaco pode ser utilizado dentro dos quatro elementos. O tabaco do fogo é
o tabaco queimado em cachimbos (e similares) e apenas baforado, sem
tragá-lo. Neste caso é muito utilizado para rezar. Considera-se que a fumaça
lançada ao ar carrega a oração até o Grande Espírito (Deus). Foi através da
civilização ou do “homem branco” que o tabaco tomou outra dimensão
(viciante, cancerígeno, etc.). Na maior parte das tradições que fazem uso
ritualístico do tabaco, ele jamais é tragado – é considerado um desrespeito
com o espírito ancestral desta planta sagrada. O tabaco d’água é o tabaco
preparado pela sua infusão em água (por alguns dias) e inalado via nasal ou
oral (de acordo com o ritual). O tabaco da terra é tabaco seco mascado e
cuspido (ritual da mascada) e o tabaco do ar é uso ritualístico do rapé
(aspirado via nasal). O tabaco ainda é muito utilizado para oferenda (para a
terra/Terra e para o fogo), considerado como uma forma de agradecimento
ou oração. Quando o tabaco é utilizado espiritualmente, traz purificação,
centramento, transforma energias negativas em positivas, serve de
mensageiro. O rapé indígena No norte do Brasil, povos indígenas usam
o rapé há séculos (antes da chegada do homem branco). Algumas etnias, tais
como a Huni Kuin – Kaxinawa e a Yawanawa, tem o rapé como uma
“medicina” (associada ao uso terapêutico e espiritual).O tabaco
utilizado para a elaboração do rapé é cultivado (orgânico) pelo próprio povo
(e geralmente rezado em todas suas fases: plantio, cultivo, colheita,
preparo). O tabaco mais conhecido é do tipo “mói”, que é preparado em
corda.O rapé neste caso é constituído de tabaco (pilado) e cinza (pau
pereira, cumaru, canela, canela de velho, entre outras). Para esses
povos, o rapé é uma medicina que contém um espírito com grande poder,
trazendo curas, proteção e afastando todo tipo de males. Outro ponto a
salientar, é que o rapé não é aspirado, mas sim soprado nas vias nasais
através de uma espécie de canudo, chamado de “tepi”. Também pode ser
autoaplicado através de um instrumento chamado de “curipe”. Detalhe do
Tepi à esquerda e Kuripe à direita No passado, o rapé era utilizado
apenas pelo pajé da tribo, para que pudesse se “conectar” ou integrar-se à
natureza, podendo identificar males que pudessem atingir seu povo ou então,
em rituais de cura, com o propósito de proteção espiritual, identificação da
doença e, trazendo o poder do espírito desta medicina para curar.
Atualmente, há uma maior difusão do uso do rapé para fins ritualísticos, não
só nas tribos, mas também pelo Brasil a fora – por associações religiosas,
grupos espirituais, terapeutas xamânicos, entre outros. Seu uso é associado
ao ritual com Ayahuasca (Hoasca, Uni, Nixi pae, Santo Daime). As etnias Huni
Kuin e Yawanawa, tradicionalmente usam o rapé em rituais com ayahuasca.
Outro fato é que estas etnias há alguns anos, vem difundindo suas tradições,
não só pelo Brasil, mas pelo mundo a fora. Deste modo, vários grupos
religiosos que fazem uso ritual da ayahuasca (até mesmo o Santo Daime),
vêm introduzindo o rapé em seus cerimoniais O rapé e a ayahuasca
possuem uma grande intimidade. A união destas energias gera maior luz,
curas e alinhamento espiritual. O rapé Yawanawa Nesta tradição, o
rapé é elaborado tradicionalmente com as cinzas de cascas de pau pereira,
chamado de “tsunu”. Há também, opcionalmente, a adição de pequenas
quantidades de canela.De acordo com Almeida (et al., 2007), o pau
pereira (Geissospermum vellosii) está entre as plantas mais estudadas pela
medicina popular (há indícios para tratamento de Alzheimer e comprovada
ação analgésica), utilizado desde meados do século XIX para tratar malária,
má digestão, inapetência, febres, tonturas, prisão de ventre, entre outras.
Trata-se de um poderoso alcaloide (geissospermina, entre outros em menor
quantidade) que é extraído das cascas do pau pereira. As primeiras
publicações médicas sobre o alcaloide surgiram em 1837, no Brasil.
Atualmente existem vários estudos a respeito o uso medicinal deste alcaloide.
O feitio do rapé é simples, porém, não deixa ser um ritual. Primeiramente
deve-se ter tabaco seco e cinza de tsunú. O principal ritual da elaboração é o
pilar (pilão) do tabaco. A pessoa que realiza este processo deve estar
concentrada (em silêncio), pois, considera-se que grande parte da força do
rapé vem da intenção de quem pilou. O feitio pode ser cerimonial, com cantos
e orações. O tabaco pilado é peneirado e, então, surge a alquimia: a mistura
da cinza com o tabaco. A proporção é variável, definida muito intuitivamente.
Para os Yawanawa, o rapé tem o poder de expulsar qualquer malefício que a
pessoa possua. Serve também para auxiliar em processos de cura,
protegendo e integrando o curandeiro às forças da natureza. O seu uso é
muito associado aos rituais cerimoniais com Uni e também com o Sepá (resina
natural que é queimada – usada como defumação, com grande poder em
trabalhos de cura). Rituais com o rapé O rapé usado em rituais,
chamado de “roda de cura” é um cerimonial voltado a um uso terapêutico do
rapé. A cerimônia pode ser constituída de vários rituais, tais como
defumações, orações, cantos e a aplicação do rapé (usa-se a expressão
“tomar rapé”).Para pessoas inexperientes, o rapé pode causar uma
forte impressão a respeito (assustar-se com a sensação ou vivenciar uma
forte experiência) e por isso, cabe a quem está aplicando e conduzindo o
ritual, explicar e proporcionar um ambiente seguro para que a pessoa possa
realmente se entregar ao processo. Além disso, para uma primeira vez,
geralmente é aplicado doses menores e sopros moderados. Para pessoas
experientes com esta medicina, a aplicação pode ser muito variada, de acordo
com as necessidades e objetivos.O rapé é uma medicina basicamente
de conexão. Trata-se de um poderoso alterador de consciência (enteógeno).
Saliento isto, pois o rapé, espiritualmente falando, tem o poder de abrir
inúmeros portais e a pessoa pode acessar diferentes dimensões. Por esse
motivo, é imprescindível estar em ambiente seguro e próprio para tal
experiência. Os cantos, assim como em rituais com ayahuasca, tem um papel
muito importante para conduzir a pessoa a um caminho de cura e iluminação.
Rapé é coisa séria! O uso desta medicina deve sempre estar alinhado a um
propósito espiritual. É preciso estar concentrado, em oração, procurando a
firmeza, juntamente à entrega, para poder receber a cura ou a instrução
espiritual. Qualquer pessoa pode aplicar rapé? Não é qualquer
pessoa que pode aplicar (soprar) rapé. Existe a diferença entre se
autoaplicar e aplicar em outra pessoa. A autoaplicação é voltada às pessoas
que fazem estudo com o rapé e, neste caso, é fundamental para que a
pessoa possa identificar o próprio poder pessoal junto a esta medicina.
Recomenda-se a autoaplicação para quem já passou por um ritual de cura
com rapé e possua consciência e conhecimento desta poderosa medicina.
Para os experientes, a autoaplicação é feita antes de aplicar em outras
pessoas (como forma de estar conectado e protegido).Dentro das
tradições indígenas, a pessoa que quer aplicar rapé precisa fazer um estudo
profundo, com aplicações fortes de rapé (para poder conhecer
profundamente a medicina), seguido de uma dieta especial, onde,
basicamente, é retirado o açúcar (inclusive frutas) e as relações sexuais
(entre outros como carne vermelha e sal). Segundo as tradições, o açúcar
gera uma falsa energia (como uma droga) e por ser estimulante, deixa a
pessoa menos sensível (portanto gera uma dificuldade de conexão espiritual),
além de estimular a energia sexual, durante o período de estudo (que é de no
mínimo 15 dias e, podendo se estender a um mês ou mais). Reter a energia
sexual durante o estudo é fundamental e, uma vez que isso seja quebrado, o
estudo precisa ser recomeçado do zero. Durante o período de estudo a
pessoa usa o rapé diariamente, orando e pedindo a instrução e a benção do
espírito desta medicina. O processo de estudo é também uma cura. Para uma
pessoa que vive de forma mundana, esta dieta pode ser um real caos,
gerando uma grande mudança em sua vida. Por isso, é importante que a
pessoa esteja sob a orientação de uma pessoa experiente.É
fundamental compreender que o motivo principal do estudo para aplicação de
rapé é por algo muito simples: quando a pessoa assopra o rapé em outra
pessoa há uma forte troca energética entre ambas (principalmente para
quem recebe) e então pergunto: que tipo de energia a pessoa está
recebendo? A medicina do rapé e baseada na intenção. Segundo as
tradições indígenas, o rapé pode tanto curar como gerar doença e males
espirituais, tudo depende da intenção de quem o usa e/ou aplica. Aplicar rapé
é uma grande responsabilidade. Devemos conhecer e confiar plenamente em
quem irá nos aplicar, pois estamos dando nossa vida nas mãos de outra
pessoa. Quem aplica também recebe a energia da pessoa que recebe e, neste
caso, não tendo um prévio estudo com o rapé, poderá estar recebendo
energias densas que podem gerar inúmeros males e até doenças. Portanto, o
estudo (dieta) é fundamental para ancorar e compreender a poderosa
energia do rapé. Somente pessoas experientes (que possam orientar e
ancorar) podem passar este estudo a alguém. Sintomas e benefícios do rapé
A experiência com o rapé é muito intensa. A pessoa vivência uma série de
reações físicas, psicológicas e espirituais em pouquíssimo tempo.Os
sintomas diretos da aplicação forte de rapé são: forte ardência de toda face
nasal, sensação de queimação nas cavidades, forte pressão na cabeça,
tontura, acelera os batimentos cardíacos, falta de ar, náuseas, vômitos,
sensação de paralisação corporal, entre outras. Porém, isto é o extremo, pois
um sopro moderado pode ser bastante tranquilo, apenas sentido leve tontura
e relaxamento do corpo.O rapé deve ser soprado em ambas às
cavidades nasais. Quando iniciamos um trabalho cerimonial, destacamos muito
esta informação. Cada uma das faces nasais representa um meridiano do
corpo. O lado direito é associado ao masculino (racional) e o lado esquerdo o
feminino (intuitivo). A pessoa que vai receber um sopro pela primeira vez
deve estar ciente disto. Algumas experiências que tivemos, demonstraram
que a pessoa que não se propõe receber o segundo sopro (medo), acaba
entrando em um processo tão ou mais forte que o habitual. Isso basicamente
se deve pelo fato da pessoa não se entregar ao processo de cura e/ou
também rejeitar a medicina, o que, de certa forma é como rejeitar o espírito
do rapé.O rapé, psicologicamente falando, trata principalmente dos
medos. Uma aplicação forte de cura pode levar a pessoa a vivenciar sua
própria sombra e acessar os medos mais obscuros. Inúmeras experiências
comprovaram a eficiência no trato de depressões, medos obsessivos, insônia,
ansiedade, entre outros.Há indícios que a cinza de pau pereira
neutralize parte da nicotina do tabaco, o que torna o rapé um meio de curar
tabagistas. Comprovadamente pude conhecer várias pessoas que largaram o
vício (cigarro) após fazer ritual com uso de rapé. Particularmente venho
estudando o rapé há algum tempo e, costumam me perguntar: “rapé vicia?” A
resposta é simples: o uso ritualístico (dentro do sagrado – espiritual) do rapé
não vicia. Porém, mesmo este rapé com cinza de tsunu pode viciar àqueles
quem fazem o mau uso (usam rapé sem um propósito espiritual) desta
medicina.Sob a óptica espiritual, o rapé pode expandir muito a
consciência e a mediunidade. Pessoas com forte mediunidade vivenciam
intensas experiências com o rapé, recebendo com clareza informações,
orientações e curas. Para quem trabalha com esta medicina, ela é excelente
para trazer o centramento, conexão, instruções para o trabalho espiritual e,
além disto, protege nosso corpo e espírito.O rapé também é muito
eficiente para tratos do sistema respiratório e digestivo. Eu mesmo curei
minha sinusite e inúmeras pessoas já se curaram de renites, tiveram maior
imunidade contra resfriados e outras disfunções respiratórias. O rapé é muito
poderoso para tratar o sistema digestivo. Energeticamente, ele atinge de
forma direta o plexo solar (região do estômago – também associada aos
medos, ansiedade, etc.), fazendo com que a pessoa arrote ou até mesmo
vomite, eliminando energias densas desta região. É também muito eficaz para
tratar a constipação (efeito imediato). O rapé ainda traz curas rápidas de
dores (cabeça ou no corpo), desperta o corpo (quando sonolento e
preguiçoso), traz relaxamento, e sensação de frio (baixa a pressão). O povo
Yawanawa tem como costume tomar rapé no final da tarde, após o trabalho
para resfriar o corpo e relaxar, seguido de um banho de rio. O rapé tem
energia predominante da terra. Por ser uma energia densa, quando estamos
sob o efeito forte do rapé, a forma mais simples e rápida de diminuir o efeito é
banhar-se com água fria. Recomendações para quem faz o uso
terapêutico/espiritual do Rapé, O rapé é uma medicina sagrada – um
espírito poderoso da floresta e, deve ser tratado como tal. É uma medicina
muito forte que como já disse anteriormente, pode trazer o bem ou o mau,
tudo depende de como é utilizado.Não se toma rapé a toda
hora. Para quem estuda o rapé, recomenda-se usá-lo de manhã (antes do
café da manhã), final de tarde (após trabalho) e a noite, antes de dormir
(para trazer bons sonhos e ter uma noite tranquila de sono). Em trabalhos
cerimoniais, podem-se tomar vários sopros, de acordo com a necessidade e o
propósito.Não é recomendado tomar rapé sob o sol (principalmente
nos horários em que o sol está mais intenso). A força do rapé é acentuada
nesta situação e, além disto, é dito que é como desafiar o espírito do Sol.
O rapé usado muito frequentemente causa moleza, fraqueza, dores nas
articulações. Por isso, mesmo para quem estuda, é importante fazer pausas
durante alguns dias e fazer tratamento com kapun (vacina do sapo), seguida
de dieta (sem açúcar, sexo e rapé). Segundo os Yawanawa, o kapun limpa
toda a energia do rapé e renova a energia corporal.Deve-se evitar
usar e/ou aplicar rapé em público (que não conhece tal prática). Segundo os
Huni Kuin, a pessoa que está aplicando pode contrair algum tipo de doença ou
mal, devido à energia gerada por quem observa.É dito por ambas às
etnias que aplicações muito fracas ou muito fortes não são boas nem para
quem aplica nem para quem recebe. Rapé é medicina de cura; se tomar deve
ser forte o suficiente para tal, mas não mais forte que o necessário (por isso a
importância do estudo e experiência com o rapé).Não se recomenda
emprestar instrumentos de aplicação (principalmente o curipe – aplicação
pessoal), a não ser para pessoas que trocam rapé com você e que
você confie plenamente.
Só tome rapé de quem você conhece e confie. Evite também receber ou se
autoaplicar rapé de procedência desconhecida.Essas são apenas
algumas recomendações importantes para quem quer ter boas experiências
com a medicina do rapé. Desfrute com consciência e sempre lembrando que o
rapé é uma medicina de pajé (de cura) e, portanto, deve ser utilizada com
respeito.